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domingo, 12 de setembro de 2021

A Insustentável Leveza do Ser

38 anos me separam da publicação deste livro. Como convivi com amigos leitores, todos nós adolescentes e jovens, salvo professores, padres adultos (adúlteros da ditadura militar 1964/1985, correlata à Primavera de Praga, só que criminosos da burguesia brasileira contra os trabalhadores e a democracia) de nossa formação, e conhecedores da literatura, tinha uma noção do romance. Não tinha dinheiro para comprar, os sebos tinham o conceito de vender algo raro, as vezes mais caro que o novo, e somente nos grandes centros, as capitais. Não tinha sebos virtuais. E quem sabe, porque não, não compreenderia a proposta do autor. Sim, em 1983 a Europa de Milan Kundera, Praga especificamente, ele discorre sobre a relação com os bichos de estimação, dentro de casa, atendimento veterinário, carinhos, longe das minhas relações de carinho, mas no pátio, livres, soltos. Na minha casa tinha bem pouco desta forma, ainda casual, sem sistematização. Entre meus vizinhos, pertencentes à classe A e B, existia essa "humanização" dos bichos, hoje, argh!, pet's. Mesmo na Praga invadida. O que me propiciou a ratificação de elite, evolução estreitamente vinculada à distribuição de renda, à educação laica e pública, a ciência e não a religião como fundamento da vida.

Nesse sentido, como Helena Blavatsky, lia no etéreo, ou seja, ouvindo o que os outros leram, numa ou outra citação de um livro, revista, no comentário de um professor.

Tinha uma ideia existencialista desse romance, a lá, Jean Paul Sartre e a melhor de todas, Simone de Beauvoir. Romance na materialidade. Ler agora, foi interessante porque tenho a idade do protagonista e os chãos trilhados se tocam.

Um dia, entre 1988 e 1990, estava em Florianópolis em função de alguma atividade de natureza sindical, estava em cartaz num cinema tido como alternativo, A insustentável Leveza do Ser. Ainda lembro de forma difusa as paredes externas verdes, uma varanda, portas em formas de arco romano. Mas difusa. Não sei se existiram mesmo.

Do filme uma lembrança única, uma das protagonistas, Tereza, para entender as “traições” de seu companheiro, Tomas, envolve-se sexualmente com um estranho. Recortada e difusa, lembro dela sair não feliz. Nessa sequência guardo o conceito de A Insustentável Leveza do Ser, não conferida a Tomas, o leve, tranquilo em suas relações abertas, mas a Tereza em buscar essa leveza. Fragmento difuso, mas que me acompanhou nesses anos todos.

Ao ler a obra, aguardava incessantemente encontrar a cena difusa em minha memória, única referência de vínculo. Teria mesmo ou poderia ter sido acrescida pelo diretor ou mesmo uma invenção minha? Ufa. Cheguei nas páginas que confirmavam a cena. Senti-me familiarizado. E foi só.

A velha máxima “as linguagens são distintas” confirmou-se. Cada linguagem expressa a título de interpretação, suas leituras distintas do original. Seja pelas ferramentas, instrumentos utilizados, seja por ser uma leitura do espectador. Assim, o diretor do filme,  é um leitor do livro e reproduzirá fielmente o que o autor escreveu ou, invariavelmente, reproduzirá o que entendeu com seus conhecimentos. Com isso cai por terra a máxima tola de “o livro é melhor que o filme”, pois não se comparam linguagens, mas compreende-se o que cada uma pode oferecer, jamais esquecendo que qualquer linguagem ou ferramenta é operada por um sujeito manifestando-se, via ferramenta, instrumento e linguagem, organizando um diálogo.

Milan Kundera criou Tereza e suas características, mas Philip Kaufman colocar Juliette Binoche como Tereza é o indicador significativo de que uma leitura é uma co-autoria ad infiintun de cada leitor da obra original, sendo essa, já advinda de outras relações.

Ao livro.

Maravilhado! Primeiro porque manteve minha leitura etérea a partir dos outros, como a minha lembrança difusa da única cena do filme. Nem a sequência célebre de fotografias pelas duas protagonistas eu lembrava.

Milan Kundera narra como autor um romance que criou. Faz inserções distanciando-se de sua própria criação. O que chama-se de metalinguagem (uma linguagem dentro da outra), observo que ele faz o diálogo entre as linguagens, a ficção, o romance, e a realidade, suas opiniões diretas, não somente no texto das personagens, mas se próprio pensamento. Milan é um personagem à parte, narrador dos personagens e de si próprio.

A estrutura que ele discorreu o romance, remeteu-me a Pulp Fiction, 1994, sem linearidade. Dentro dessa estrutura, algumas subdivisões me incomodaram, como períodos curtos, bem delimitados e objetivos em contraposição de outros mais longos, sugerindo um ritmo de leitura assimétrico e por vezes cansativo, mas sempre inovador e significativo.

As personagens, agora minha concepção existencialista, muito concretas, saem nhenhenhém, vivendo um dia após o outro. Sim, com os elementos de ciúme, posse, mas atenuados pelas decisões humanas. Faço, não faço. Estou sentindo, estou fazendo sentir, mas humanas, resolvidas na materialidade da relação.

No decorrer da leitura, estava temente, com alguns conceitos advindos do criacionismo (correto na religiosidade e as emoções de dependência afetiva produzidas por suas imagens, como “D’us quis assim, é destino, alma gêmea, romance homem/mulher, mas não na materialidade civil, científica, diversa..) mas que nos dois capítulos finais,  literariamente no texto do romance ele dissolve espetacularmente.

O contexto político da Primavera de Praga, 1968, invasão da então Tchecoslováquia pela então URSS, seus desdobramentos de perseguições políticas e contexto para toda a transformação da vida das personagens, o que toda ditadura faz. Milan Kundera traça, assim senti, o drama da ditadura debatendo de forma pontual a repressão à liberdade de expressão na individualidade, permitindo a analogia com o conceito de kitsch extensivo a toda forma de pacote, enlatado, moda contido também na falsa ideia de liberdade no capitalismo.

É isso.